Campinas, 18 de maio de 2017
Museus de Cidade - Um projeto em
permanente construção
Musealizar Cidades
Por
quê?
Como?
Para
quem?
Inicialmente vou contar um pouco da minha experiência.
Em 1984 assumi a diretoria da Divisão de Iconografia e Museus
da SMC.
Qual a situação encontrada?
A Divisão administrava:
- As casas-museus entre elas as casas bandeiristas como a Casa do Bandeirante, Sitio da Ressaca, Casa do Tatuapé, Casa do Sertanista, Sítio Morrinhos além da Casa do Grito e do Monumento à Independência, o Solar da Marquesa de Santos e o Beco do Pinto. Em 1954, por ocasião do quarto centenário da cidade de São Paulo, as casas bandeiristas haviam sido recuperadas e decoradas com mobiliário colonial mineiro dos séculos XVII, XVIII e XIX como camas de dossel, cozinha, salas de jantar e de visita completas, etc.
Com base em pesquisas em inventários, relatos, iconografia da
época e trabalhos arqueológicos, pudemos verificar que aquela cenografia
existente passou por 30 anos ao público, uma falsa realidade. Os inventários
falavam em 3 colheres, 2 pratos de cerâmica, 3 redes, um pilão, banquinhos e
moinhos. Os arqueólogos encontraram vestígios de fogueira no centro do cômodo
principal concluindo que ali era o local de cozimento de alimentos e de
refeições.
Desmontamos a cenografia e recolhemos o acervo de
mobiliário.
- A DIM detinha um importante arquivo de negativos criado em 1935 quando Mário de Andrade criou o Departamento de Cultura e que incluía os famosos negativos de vidro com imagens desde 1860 e as coleções de Militão, Becherini e Gaensly.
- No alto do prédio Martinelli havia uma exposição fotográfica organizada pelo Julio Abe. Eram painéis fotográficos tipo museu de rua, colocados estrategicamente nos terraços da cobertura do prédio. As fotos de São Paulo antiga do acervo de negativos colocados exatamente em frente a sua localização hoje na cidade de forma a estabelecer a comparação da paisagem urbana e sua transformação ontem e hoje.
Essa exposição era a intrigante, provocativa e inspiradora semente
do Museu da Cidade.
Recuperamos o processo administrativo que criava o Museu da
Cidade neste local. Havia um texto do Murilo Marques primoroso com considerações
teóricas, mas ainda não se configurava como projeto de museu.
PRESSUPOSTOS CONCEITUAIS
Fui a primeira museóloga contratada na Prefeitura. Tínhamos
então uma equipe multidisciplinar formada basicamente de historiadores,
fotógrafos e arquitetos.
Uma equipe multidisciplinar foi fundamental para o
desenvolvimento do Projeto do museu. Historiadores por si só davam conta das
pesquisas históricas, com longos textos, citações de fontes e bibliografia, mas
não davam conta da pesquisa museológica. A vida inteira eu disse que uma
exposição museológica não é um livro em pé. Ninguém lê um livro, em pé em um
museu. Por outro lado, a pesquisa museológica parte da pesquisa histórica para
dar voz à cultura material, à iconografia, aos documentos e objetos
tridimensionais, como meio de contar história.
Na época não se falava em visão e missão como também em salvaguarda
e comunicação. Falávamos em preservação e divulgação.
O objeto deste museu era uma metrópole. Uma megalópole.
A tipologia – um museu de história e sociedade.
História de uma cidade complexa, multicultural caracterizada
principalmente pelo seu desenvolvimento em dois eixos: a industrialização e a
imigração.
Um edifício-museu, por maior que fosse não conteria uma
metrópole. Não pelo tamanho, mas pela
redundância afinal a cidade estava ali como produto histórico materializado.
Começava a se configurar um museu pela cidade e não uma
cidade dentro do museu. Musealizá-la seria empreender ações virtuosas de:
evidenciar, desvelar, apontar nela mesma, na cidade, as suas memórias, suas
camadas sedimentadas no espaço e na geografia, no tempo, na ocupação e na
dinâmica das relações sociais. Teríamos que mostrar o processo de construção
para além do produto histórico.
Já existiam os conceitos de eco-museus. Chegamos a considera-los, porém os descartamos
como explicarei mais a frente.
Concebemos um museu de múltipla sede com um centro de
referência e núcleos museológicos. Hoje seria talvez denominado museu em rede.
Os núcleos podiam ser geográficos (museus de bairro ou de
comunidades) ou temáticos incluindo os sítios arqueológicos.
Julio Abe já trabalhava os museus de rua, com história de
bairros e também temáticos.
Vivíamos na época o inicio da redemocratização do país após
a ditadura militar.
Envolvidos na grande euforia da redemocratização organizamos
exposições, do tipo museu de rua, com temas da História política. História das
eleições, História das Constituintes, da Mulher na Política, do 1º de Maio, etc.
Foi uma revolução. Os museus brasileiros não chegavam até a história
contemporânea, com exceção aos museus de arte. Nem o currículo escolar, a bem
dizer.
Eu havia anteriormente criado o Museu do Teatro Municipal e
que foi também integrado como núcleo museológico do Museu da Cidade.
Começamos então a “legendar” a cidade em conjunto com a
Câmara Municipal. Eram legendas com informações histórico-culturais junto a
placas de nome das ruas, nos prédios e logradouros onde viveram pessoas de
destaque ou locais em que aconteceram fatos históricos e movimentos políticos e
sociais.
Incentivávamos também a organização de museus comunitários
dando assistência técnica.
Implantamos o Serviço Educativo que evidentemente consistia
em passeios guiados na cidade começando pelo circuito Centro Histórico.
Por outro lado nos engajamos em movimentos preservacionistas,
num verdadeiro protagonismo militante. Participamos da criação do COMPRESP, da
Comissão de preservação do IAB, abraçamos a igreja da Penha, a casa do
arquiteto Gregori Warchavchik que veio a ser tombada como Casa Modernista,
o Parque do Ibirapuera, demos assistência técnica na implantação do museu Adoniran
Barbosa e de museus de bairros.
Muitas vezes estudantes e pesquisador não sabem onde
pesquisar. O Centro de Referência era também uma forma de facilitar a vida do pesquisador.
A cidade já continha arquivos e museus organizados. Estes
deviam ser referenciados na sede do Museu da Cidade. Para isso o trabalho
deveria ser colaborativo entre nossos técnicos e a sociedade. E assim foi com
universidades, associações e jornais de bairro, sindicatos, etc.
O Centro de Referência na verdade é um centro de estudos
permanente podendo inclusive subsidiar políticas públicas. Neste sentido um
museu de cidade não é lugar de contemplação, mas sim um agente de conhecimento,
conscientização e transformação da cidade.
Por quê?
“Além de demonstrar a importância da imagem subjetiva da
cidade para o planejamento urbano, Lynch[1]
nos diz que a legibilidade é também instrumento de ação sobre o ambiente. Uma
percepção adequada de nosso entorno, de nosso posicionamento relativo na cidade
e no mundo é fundamental tanto para identidade individual quanto para a noção
de coletividade. Localização, posicionamento, individuação, identificação e
delimitação são operações que tem um papel chave na formação das subjetividades
pessoais e politicas. Aquilo que somos é determinado em larga medida por nossa
localização na sociedade e no mundo. (HARVEY, 2001[2])
Os museus de cidade são territórios privilegiados como
potencializadores da função social dos museus. Como museus de história e
sociedade compreendem a cidade como polis, ou seja, politizam as relações
sociais evidenciando nossa condição de cidadãos conscientes ou não de
cidadania.
Mauricio Segall fala em museologia militante. Atos de
preservação e musealização.
“ Tentar responder, portanto, qual é sua função social,
significa tomar posição e jogar fora sua pretensa neutralidade, e a dos
objetos, e tentar assim combater os Micróbios malvados deste mal da
pós-Modernidade, já epidêmico neste fim de Milênio, que resulta numa tácita e
implícita anuência a todas perversas Mazelas sociais da atualidade.
Mesmo se certamente poucos, em sã consciência, presumem que
o patrimônio cultural e artístico está aí para ser preservado só pela volúpia
da preservação, ou como um fim em si mesmo, ou como santuários de objetos
sacralizados, a meu ver continuam não respondidas satisfatoriamente as questões
- conservar o patrimônio cultural e artístico, por que e para quê? Divulgá-lo,
como e para quem? Eis uma segunda questão!
A hipótese que defendo é que, além do seu evidente potencial
de fruição, seja, sobretudo, para preencher uma função conscientizadora, isto
é, que também os Museus sejam militantes no apoio à luta do ser humano pela
conquista da liberdade substantiva, ou seja, da livre escolha de alternativas. Isso porque a liberdade tem tudo a ver com o
conhecimento em um processo dialético de apreensão da realidade. ” [3]
Se a função social dos museus os coloca em seu papel de
representar a sociedade possibilitando o conhecimento, a ação museológica dos
Museus de Cidade é política na medida em que são instrumentos poderosos de
formação de cidadania e de desalienação do individuo.
Assim a escolha dos pontos na cidade, sejam edifícios,
sítios, ruas e casas a serem legendados, são políticas.
Bem. Era um grande desafio.
Aqui faço um parêntese para estabelecer a diferença entre
musealizar e museificar.
O ato de museificar carrega uma conotação redutora quase que
pejorativa. Seria como mumificar, congelar, interromper ou suspender a vida. Por
outro lado musealizar é preservar e revelar os objetos testemunhos como signo,
ou seja, seu significado como um ponto no processo dinâmico da evolução e da sua
historicidade.
Na aldeia a história é comunitária e endógena, ou seja,
construída e transmitida por e para um povo, como por exemplo, as aldeias da
África cuja tradição os grios é passada oralmente entre as gerações.
Se na aldeia todos se
conhecem, o que reforça a identidade comum, na cidade moderna o estranhamento e
as diferenças tornam as construções culturais mais complexas. Seus signos estão
estruturados como camadas sedimentadas, muitas vezes invisíveis, à espera de um
olhar arqueológico. Construídas na maioria das vezes a partir de um povo
originário sedentário se desenvolvem como resultado dos movimentos migratórios
determinados pelos mais variados motivos como conflitos étnicos, acidentes
naturais, questões econômicas, políticas, etc.
As cidades não podem ser musealizadas apenas como
artefato. A cidade morta é ruína. Musealizar cidades é desvelar, comunicar e
dar expressão à dinâmica das ações e das relações sociais em permanente
movimento de destruição e construção de signos que se sedimentam se superpõem
ou se mesclam.
Esse é o desafio da museologia de cidades.
Por outro lado, musealizar é também construção cultural com-temporânea,
ou seja, marcada e contaminada no tempo em que ela se dá.
Sabemos que os museus têm origem na musealização das
coleções particulares da elite proprietária e que, historicamente, incorporaram
as histórias e signos comunitários, populares, políticos, etc.
A ação de musealizar a cidade acrescenta um novo e extemporâneo
componente cultural à própria história da cidade. Trata-se aqui de compreender
como elas foram preservadas. Se o sentido de preservar é universal o mesmo não
acontece com a ação de musealizar. A ação de musealizar não é neutra. E esta é
a questão que me intriga.
Conversando com o filho fotógrafo, especialista em fotos de
arquitetura e cidades, ele, representante de outra geração que não a minha,
vejo-me diante da seguinte questão: o que é para mim e o que é para as próximas
gerações o ato de preservar. Ele observa que várias cidades europeias foram
“congeladas” para turistas como bens de consumo em nossa modernidade
capitalista com seus souvenirs made in China. Ao filho fotógrafo interessa
captar e registrar aquilo que representa ou o que expressa a vida cidadã, ou
melhor, a dinâmica das vivências na cidade. Ele procura as cidades vivas e
percebe a artificialidade das bonitinhas e palatáveis se transformando em
parques temáticos para turistas. Neste sentido elas são preservadas apenas como
artefatos. São cidades museu e não museu
da cidade. Aqui eu tentei explicar a referência que fiz acima sobre os eco-museus.
Há uma impossibilidade ontológica na tentativa de musealizar
a realidade histórica com todos os seus componentes.
Seriam a musealização e os museus ações inglórias, sonhos
onipotentes?
É preciso que se saiba que a musealização das cidades será
sempre artificial. Como os filmes, os livros históricos e os próprios
documentários, é a imaginação do autor (curador) que se impõe ao público como
mediação do real.
Recuso-me a acreditar que passei minha vida em uma atividade
inglória.
Corrigindo rotas nessas reflexões necessárias, passo pela ideia
de que a própria história e, em última análise a memória seriam inglórias se
pretendessem conter e expressar na totalidade a realidade dos fatos
históricos.
Sou salva recuperando a própria ideia de tempo, de memória e
principalmente de criatividade. Como um ciclo, chego aos elementos essenciais
da museologia.
Museus não são escolas onde professores praticam o ensino
formal. No museu o ensino é informal. Museus são cenários privilegiados onde se
dá a relação profunda entre o homem e o objeto testemunho.
A museologia não é ciência exata, embora se utilize (de
algumas) delas em suas ações de conservação e exposição de acervos. A ação de
musealizar tem uma dimensão artística. Na tentativa de dar expressão aos
objetos museológicos, ela cria. Assim ela quer provocar a imaginação e a
memória de seu público. Por si só ela não realiza o passado, mas na imaginação
do público o sonho é glorioso.
Não basta vivermos o aqui e agora, mas, porque morremos e
não somos eternos, construímos eternamente a eternidade.
Desafios do século XXI
Frederic Jamenson, crítico literário e teórico marxista,
conhecido por sua análise da cultura contemporânea e da pós-modernidade diz que
“Diante da velocidade e do ritmo das transformações do mundo atual, estamos
perdendo a capacidade de nos situarmos cognitivamente no espaço”.[4]
Recentemente o Museu da Cidade de São Paulo apresentou a
exposição fotográfica “Atlas Fotográfico da Cidade de São Paulo”, do fotógrafo
Tuca Vieira, baseada na problemática de Jameson. https://www.tucavieira.com.br/atlasfotografico
Esse trabalho é uma tentativa de representação da cidade
através da fotografia. É uma tentativa de mapeamento cognitivo. Ciente da
impossibilidade de um mapeamento pleno, o fotógrafo buscou alguns caminhos no
universo criativo das artes visuais e da literatura, com suas narrativas, na
interpretação e na representação da cidade.
Essas fotos tentam recuperar a capacidade perdida do homem
contemporâneo de perceber a cidade em que vive. As pessoas hoje caminham
apressadas. É preciso flanar para conhecer a cidade.
Os Museus de Cidade são projetos em permanente construção.
São obras abertas. Podem e devem se valer da literatura e da poesia (Meditação
do Tietê de Mario de Andrade), da fotografia, de documentários e dos depoimentos
orais de história de vida.
É fundamental o trabalho em parceria com a sociedade
organizada em comunidades, universidades, escolas, empresas privadas, associações
de moradores, jornais, etc lembrando que
também os zoológicos e jardins botânicos são museus.
Além da história, os museus de cidade passam a recorrer a outras
disciplinas como a antropologia, arqueologia, sociologia, psicologia social,
geografia, geologia, arquitetura e urbanismo.
Campanhas cidadãs e movimentos de preservação serão apoiados
pelos Museus de Cidade. Cidadãos e cidadãs reconhecidos coletivamente serão
destacados. Assim artistas, intelectuais, políticos esportistas, cientistas e
trabalhadores em geral.
Documentar e monitorar a Arte pública, esculturas ao ar
livre e obras de arte em dependências dos prédios públicos, Monumentos e
Memoriais podem e dever fazer parte de suas atribuições.
Quanto às novas tecnologias, penso que devemos utilizá-las
amplamente. É a nova linguagem. Hoje contamos com avião-scanner que mapeiam a
cidade eliminando a vegetação. É a arqueologia sem pás. Temos o GPS, a internet
e as redes sociais, mídia digital e apps. As novas tecnologias oferecem suportes
inesgotáveis à museografia.
Se quisermos nos comunicar efetivamente com o público das
novas gerações não podemos ignorar as novas tecnologias.
Por outro lado a revolução tecnológica a meu ver tem provocado
alguns equívocos. Estamos denominando museus aquilo que seriam parques
temáticos. Não existem museus sem acervo. Edifícios contendo realidade virtual no
lugar de acervo histórico cultural não são museus.
Não confundir museus que registram e preservam acervo de
cultura imaterial em suportes tecnológicos. São as fitas e vídeos cassetes.
CDs, CDRooms, DVDs, HDs Junkbox, etc. O Museu da Pessoa é um exemplo disso. Ele
detém uma reserva técnica que abriga registros de História oral. Assim também
os Museus de Imagem e de som. A tecnologia muda aceleradamente, mas os fundamentos
da museologia permanecerão insubstituíveis.
Obrigado por compartilhar um pouco de sua trajetória profissional e reflexões sobre museus de cidades.
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