sexta-feira, 15 de março de 2013

Os MEMORIAIS são um novo gênero de museu?


Os MEMORIAIS são um novo gênero de museu?         

          Os museus de história sempre me instigaram mais que os museus de arte. A experiência de gerir o Memorial do Imigrante de São Paulo foi uma caminhada das mais enriquecedoras e desafiadoras.
          Fundamental foi o processo de investigação profunda que iniciamos, desde o histórico da instituição, os primeiros projetos, as exposições e os programas desenvolvidos, até as políticas adotadas até então. Se a concepção original já anunciava um competente entendimento sobre a instituição, o processo que se sucedeu não deu conta das potencialidades museológicas.
          Para implantarmos a nova política museológica era necessário estabelecer os conceitos norteadores, a visão e a missão do museu.
          Se, para os museus em geral, o fenômeno museal está expresso na cultura material, no Memorial do Imigrante o objeto de estudo são essencialmente sujeitos, sua individuação e sua identidade coletiva.


          Identidades coletivas podem se configurar como comunidades. Estas possuem um fundamento factual que é comungado entre seus membros e passa a ser reconhecido como valor cultural pela sociedade. No caso das comunidades de imigrantes as pessoas ou membros estão ligados por fatos vividos e compartilhados na origem.
          O museu é um espaço privilegiado para a compreensão e difusão, para a sociedade, dos valores culturais que envolvem o reconhecimento destes indivíduos ou destas coletividades. É na comunidade que nos identificamos pelo pertencimento seja à comunidade judia ou chinesa, de bairro, de ex-combatentes, ou ex-alunos, pelo simples fato de compartilharmos memória.
          O movimento humano é um processo histórico permanente no planeta e hoje se impõe como uma das principais conseqüências da globalização. É um fenômeno social, global e cotidiano.
          Não havíamos até então questionado a denominação “Memorial” desta instituição museológica. Apenas em final de 2009 nos deparamos com as questões fundamentais do termo - “Memorial”.
          São conhecidos os Memoriais que reverenciam a memória individual como o Memorial JK ou de uma coletividade: os War Memorial, os Shoah, oMemorial da Resistência e o Memorial do Imigrante.
          Os Memoriais são monumentos à memória onde a cultura material seria, portanto meio e não fim.
          No caso do Memorial do Imigrante, a antiga Hospedaria dos Imigrantes (1987 a 1976) foi alçada a monumento cujo conteúdo reverencia a memória dos imigrantes. Enquadra-se na tipologia dos museus de história e sociedade. Foi concebido para estudar, reunir coleções e objetos testemunhos, divulgar e salvaguardar a memória da imigração em São Paulo. Instalado na antiga Hospedaria de imigrantes, tombada pelos órgãos oficiais de preservação do Patrimônio Histórico é ao mesmo tempo um Memorial, criado pelo Poder Público em resposta ao reconhecimento pela sociedade, do Patrimônio Histórico da imigração, dos imigrantes e seus descendentes.
          São vários os questionamentos sobre a denominação Memorial. Seria um novo gênero de museu?
          Eles existem no mundo todo, porém não há consenso sobre o termo e, sua existência por si só não responde aos questionamentos. Faz-se necessário então avançarmos nos termos de uma deontogia.
          Situados em sítios históricos originais, refletem politicas públicas estratégicas de direitos humanos no âmbito da Justiça e das Relações Internacionais. Envolvem principalmente as questões relacionadas à memória. No caso dos inumeros memoriais de guerra, estes foram e são erigidos no sentido de reparações ou como espaços de reflexão objetivando a paz.
          No ICOM foi criado o Comite Internacional os museus comemorativos pela memória das vitimas de crimes públicos -IC Memo.
          Em 2005, em Marselha na França, foi organizado pelo Conseil français de L’Association Internationale des musées d’histoire (AIMH) um encontro para debater as questões fundamentais da definição e da expressão de um Memorial.
          Em 2006 criamos junto a UNESCO e OIM a Rede Internacional de Centros de Estudo de Migração www.migrationmuseuns.org .  Compõe-se hoje de 34 instituições em vários paises, cujas denominações variam de Cité, Museu, Centro de Estudo, Centro de Memória e Memorial.
          Há exemplos de escolha pura e simples, como é o caso do Mémorial de Caen na França que se define como um local de reflexão e debate sobre a segunda guerra e a batalha da Normandia e que se coloca como um museu pela paz assumindo maior importância ao memorial que ao museu.
          Entre os historiadores e cientistas de um lado e os memorialistas e atores dos eventos históricos de outro, os entendimentos nem sempre caminham na mesma direção. História x Memória, verdade comprovada dos fatos e dever de memória x lembranças insuportáveis, direito ao esquecimento, perdão e vergonha. A memória é também esquecimento. Esquecimento são muitas vezes filtros que protegem psiquicamente os seres humanos de situações insuportáveis. Memórias coletivas, ética e moral x memória do individuo e seus limites psíquicos. No texto de apresentação do projeto do Memorial da Resistência os autores demonstram que a atividade museológica é uma ação política inevitável nos memoriais.
          “Rememorar os atos intolerantes nos coloca em estado de alerta contra uma possível reprodução de certas circunstâncias históricas que, em diferentes momentos da história, culminam com a exclusão contra minorias étnicas e políticas, dentre outras. Mas é preciso lembrar sempre que existem parcelas da sociedade interessadas em silenciar ou, então, em distorcer os fatos. Precisamos estar atentos a esta produção intencional de silêncios, procurando compreender a razão do não dito, pois nem sempre o silêncio é sinônimo de “implícito” ou de “não querer lembrar”. O não-dizer está, na maioria das vezes, ligado à história e à ideologia”. (BRUNO, TUCCI e AIDAR, 2009, p.39)
          O Memorial do Imigrante não existe sem as comunidades de imigrantes. São elas que mantêm viva a memória da imigração. São as fontes do acervo cultural. Não existe também sem o seu importantíssimo arquivo documental.
          Uma das ações mais importantes do Memorial do Imigrante é a Festa do Imigrante. Esse evento anual foi conquistando sua legitimidade na medida em que as comunidades sentiam-se cada vez mais, como verdadeiros protagonistas do evento. A festa hoje se configura como a mais viva manifestação da memória da imigração e do envolvimento da comunidade no museu. O corpo funcional do museu tem o papel mediador e de infra-estrutura.
          Não cabe ao Estado definir os valores de pertencimento das comunidades de imigrantes para a sociedade. Pelo contrario. Na medida em que falamos de um passado histórico, de seus desdobramentos e da dinâmica das migrações no presente, a nós cumpre favorecer a visibilidade dos valores que envolvem o fenômeno, dando lugar no museu para as manifestações dos próprios sujeitos da história portadores de memória.
          O Memorial do Imigrante foi criado para dar destino a uma importante massa documental produzida desde 1892, com o início das migrações de massa promovida pelo governo do Estado de São Paulo.
          Criado como Museu em 1993 e reformulado para Memorial em 1998, foi uma importante ação de política do governo do Estado, que ao mesmo tempo em que se estabelecia o mais completo arquivo no mundo sobre imigração reunido em um mesmo espaço, rendia-se uma justa homenagem aos imigrantes em São Paulo. No Brasil os documentos sobre a história da imigração estão em Arquivos Nacional, Estaduais e Municipais. O Memorial do Imigrante de São Paulo é a única instituição cultural especializada neste assunto.
          Sabemos hoje, que poucos países possuem documentação histórica tão rica em dados individuais como a que foi produzida pela burocrática política de imigração brasileira e mais especificamente paulista, sob guarda no Memorial do Imigrante. Essa documentação foi reconhecida e classificada como Memória do Mundo em 2009 pela UNESCO. Reconhecimento esse que passou, em primeiro lugar, pela nossa própria conscientização como guardiões públicos desse importante acervo.
          O Memorial do Imigrante esteve voltado durante muito tempo, aos estudos da História da imigração de massa do final do século XIX e começo do século XX em São Paulo.
          Tânia Andrade Lima, sobre as Histórias coloniais, diz que -_ “Narrá-las simplesmente, em perspectivas biográficas que se esgotam em si mesmas, significa desconectá-las do mais espetacular processo desencadeado pela espécie humana ao longo da sua trajetória” (LIMA, 2004 p 19) –. Utilizo o mesmo entendimento em relação à História das migrações. Com essa apropriação, quero dizer que o Memorial do Imigrante, não poderia continuar trabalhando apenas as biografias dos imigrantes, deslocadas de uma perspectiva espacial (fenômeno planetário) e temporal (condição da humanidade desde os primórdios até os dias atuais) como vinha fazendo até então.
          Tânia A. Lima afirma também - “Se estudados e apresentados (os objetos) isoladamente, desarticulados dos processos mundiais mais amplos e das tensões sociais que levaram à sua produção e consumo, os objetos perdem sua força. Esvaziados, pouco contribuem não só para o entendimento do fenômeno da construção da globalidade, como também para a compreensão do seu próprio significado.” (LIMA, 2004 p.20)
          É verdade que os imigrantes e seus descendentes se emocionavam no Memorial do Imigrante.  Não se poderia dizer, no entanto, que os imigrantes, seus descendentes e o público em geral, levavam consigo, após a visita ao Museu, uma compreensão sobre o processo migratório para a História da Humanidade, sequer para a história da construção da identidade paulista.
          O desafio que se coloca para os museus de migração hoje é propiciar uma compreensão abrangente do fenômeno das migrações. Como diz Gerard Noiriel, trata-se de “mudar o olhar da sociedade e do poder público sobre os imigrantes”. (NOIRIEL, 2007, p 13)
          Ainda citando Noiriel, “a cultura pode ser um meio de ação cívica”.
          Os museus e centro de estudos de migração podem e devem facilitar o diálogo e a transmissão cultural entre gerações. Dando voz aos migrantes e as segundas gerações valorizarão a diversidade e a integração cultural. Mostrará a contribuição dos imigrantes nas sociedades de destino, colaborando para a desconstrução de estereótipos. Como um lugar de memória, contará estórias individuais e comuns às pessoas em movimento, mostrando as razões que levam os migrantes, refugiados ou forçados a deixarem seus países de origem.
          Está contida nesses museus, a grande contribuição dos imigrantes nas sociedades de destino. Estão contidos também os conflitos individuais e as tensões sociais que este fenômeno causa.
          A atuação em rede de Centros de Estudo de migração nos deu oportunidades de verificar não apenas as diversas denominações dessas instituições como também as diferentes linguagens utilizadas na comunicação museológica. A Cité de l’histoire Nationale d’immigration na França, por exemplo, utiliza em suas exposições, obras de arte de artistas imigrantes ou que tenham a imigração como tema. É a utilização da linguagem artística como mais uma expressão dos valores culturais.
          Qual o objeto de estudo dos museus de migração senão o homem e a sociedade; o individuo e sua identidade; os artifícios civilizatórios da criação de fronteiras nacionais e o conceito de nacionalidade; a geografia humana x geografia política; a integração e a etnodiversidade que corresponde ao interculturalismo que enriquece (e conflita) o mundo globalizado e as políticas nacionais.
          Se a abordagem acadêmica sobre imigração enfatizava a melhor compreensão das raízes do movimento migratório de massa transoceânico, suas implicações sócio-econômicas e as trajetórias familiares, nos últimos anos os estudiosos acadêmicos se voltaram para as questões da construção das novas identidades e dos graus de integração nos países receptores. Focado nesses fatores, os estudos se desenvolviam no marco dos respectivos países. Esse isolamento foi rompido na direção de um entendimento mais global sobre questões raciais, relações de trabalho, grau de urbanização e de industrialização em cada país, conferindo uma maior inteligibilidade de toda esta dinâmica.
          “A cultura não deve ser pensada apenas no âmbito das políticas estatais ou das propostas de acordos multilaterais, nem como mero produto, evento ou espetáculo, mas sim como processo permanente de criação de uma urdidura simbólica que permita o múltiplo entrecruzamento de experiências e tradições”... “As práticas culturais mais do que outras instâncias ensejam e contribuem para a organização dos interesses coletivos. Políticas culturais devem ser interpretadas como vetores visando à construção de valores coletivos”. (VELOSO, 2008).
          Tereza Scheiner em seu artigo da revista Nouvelle de l’ICOM, intitulado - Uma Contribuição para um Mundo Melhor - se refere aos museus como “...mediadores para uma compreensão entre as culturas, os museus contribuem à harmonia social. Eles ajudam as sociedades a perceber o patrimônio como um campo de possíveis, como um verdadeiro sustentador para uma cultura global mais tolerante, mais atenta aos valores de todos os seres humanos”.
          Nem todos os museus criam espaços que favorecem a reflexão sobre todas essas questões. Esses espaços seriam os Memoriais?
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Referências Bibliográficas
LIMA, Tânia Andrade Cultura Material, Hibridação e Dominação planetária: A Globalização nos museus históricos texto 7º Colóquio da Associação Internacional de Museus de História, (2007)
NOIRIEL, Gerard L’historien dans la Cite: comment concilier histoire et mémoire de L’immigration ?  (2007) UNESCO Museum International nº 233,234
VELOSO, Mariza, participação no I° Seminário Articulação Latino-Americana: Cultura e Política, 2008 
AIMH, Mèmoriaux – Actes des Journées d’Étude, Conseil Français de l’Association Internationale dês Musées d’Histoire, 2005 Marseille França
GORZ, André, Misérias do Presente Riqueza do Possível, (1997) trad. 2004, p.131 a 139

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