Os MEMORIAIS são um novo gênero de museu?
Os museus de história sempre me instigaram mais que os
museus de arte. A experiência de gerir o Memorial do Imigrante de São Paulo foi
uma caminhada das mais enriquecedoras e desafiadoras.
Fundamental
foi o processo de investigação profunda que iniciamos, desde o histórico da
instituição, os primeiros projetos, as exposições e os programas desenvolvidos,
até as políticas adotadas até então. Se a concepção original já anunciava um
competente entendimento sobre a instituição, o processo que se sucedeu não deu
conta das potencialidades museológicas.
Para
implantarmos a nova política museológica era necessário estabelecer os
conceitos norteadores, a visão e a missão do museu.
Se, para
os museus em geral, o fenômeno museal está expresso na cultura material, no
Memorial do Imigrante o objeto de estudo são essencialmente sujeitos, sua
individuação e sua identidade coletiva.
Identidades coletivas podem se configurar como comunidades. Estas possuem um
fundamento factual que é comungado entre seus membros e passa a ser reconhecido
como valor cultural pela sociedade. No caso das comunidades de imigrantes as
pessoas ou membros estão ligados por fatos vividos e compartilhados na origem.
O
museu é um espaço privilegiado para a compreensão e difusão, para a sociedade,
dos valores culturais que envolvem o reconhecimento destes indivíduos ou destas
coletividades. É na comunidade que nos identificamos pelo pertencimento seja à comunidade
judia ou chinesa, de bairro, de ex-combatentes, ou ex-alunos, pelo simples fato
de compartilharmos memória.
O
movimento humano é um processo histórico permanente no planeta e hoje se impõe
como uma das principais conseqüências da globalização. É um fenômeno social,
global e cotidiano.
Não
havíamos até então questionado a denominação “Memorial” desta instituição
museológica. Apenas em final de 2009 nos deparamos com as questões fundamentais
do termo - “Memorial”.
São conhecidos
os Memoriais que reverenciam a memória individual como o Memorial
JK ou de uma coletividade: os War Memorial, os Shoah, oMemorial
da Resistência e o Memorial do Imigrante.
Os
Memoriais são monumentos à memória onde a cultura material seria, portanto meio
e não fim.
No
caso do Memorial do Imigrante, a antiga Hospedaria dos Imigrantes (1987 a 1976)
foi alçada a monumento cujo conteúdo reverencia a memória dos imigrantes.
Enquadra-se na tipologia dos museus de história e sociedade. Foi concebido para
estudar, reunir coleções e objetos testemunhos, divulgar e salvaguardar a
memória da imigração em
São Paulo. Instalado na antiga Hospedaria de imigrantes,
tombada pelos órgãos oficiais de preservação do Patrimônio Histórico é ao mesmo
tempo um Memorial, criado pelo Poder Público em resposta ao reconhecimento pela
sociedade, do Patrimônio Histórico da imigração, dos imigrantes e seus
descendentes.
São
vários os questionamentos sobre a denominação Memorial. Seria um novo gênero de
museu?
Eles
existem no mundo todo, porém não há consenso sobre o termo e, sua existência
por si só não responde aos questionamentos. Faz-se necessário então avançarmos
nos termos de uma deontogia.
Situados em sítios históricos originais, refletem politicas públicas
estratégicas de direitos humanos no âmbito da Justiça e das Relações
Internacionais. Envolvem principalmente as questões relacionadas à memória. No
caso dos inumeros memoriais de guerra, estes foram e são erigidos no sentido de
reparações ou como espaços de reflexão objetivando a paz.
No
ICOM foi criado o Comite Internacional os museus comemorativos pela memória das
vitimas de crimes públicos -IC Memo.
Em
2005, em Marselha na França, foi organizado pelo Conseil français de
L’Association Internationale des musées d’histoire (AIMH) um encontro para
debater as questões fundamentais da definição e da expressão de um Memorial.
Em
2006 criamos junto a UNESCO e OIM a Rede Internacional de Centros de Estudo de
Migração www.migrationmuseuns.org .
Compõe-se hoje de 34 instituições em vários paises, cujas denominações variam
de Cité, Museu, Centro de Estudo, Centro de Memória e Memorial.
Há
exemplos de escolha pura e simples, como é o caso do Mémorial de Caen na França
que se define como um local de reflexão e debate sobre a segunda guerra e a
batalha da Normandia e que se coloca como um museu pela paz assumindo maior
importância ao memorial que ao museu.
Entre
os historiadores e cientistas de um lado e os memorialistas e atores dos
eventos históricos de outro, os entendimentos nem sempre caminham na mesma
direção. História x Memória, verdade comprovada dos fatos e dever de memória x
lembranças insuportáveis, direito ao esquecimento, perdão e vergonha. A memória
é também esquecimento. Esquecimento são muitas vezes filtros que protegem
psiquicamente os seres humanos de situações insuportáveis. Memórias coletivas,
ética e moral x memória do individuo e seus limites psíquicos. No texto de
apresentação do projeto do Memorial da Resistência os autores demonstram que a
atividade museológica é uma ação política inevitável nos memoriais.
“Rememorar os atos intolerantes nos coloca em estado de alerta contra uma
possível reprodução de certas circunstâncias históricas que, em diferentes
momentos da história, culminam com a exclusão contra minorias étnicas e
políticas, dentre outras. Mas é preciso lembrar sempre que existem parcelas da
sociedade interessadas em silenciar ou, então, em distorcer os fatos.
Precisamos estar atentos a esta produção intencional de silêncios, procurando
compreender a razão do não dito, pois nem sempre o silêncio é sinônimo de
“implícito” ou de “não querer lembrar”. O não-dizer está, na maioria das vezes,
ligado à história e à ideologia”. (BRUNO, TUCCI e AIDAR, 2009, p.39)
O
Memorial do Imigrante não existe sem as comunidades de imigrantes. São elas que
mantêm viva a memória da imigração. São as fontes do acervo cultural. Não
existe também sem o seu importantíssimo arquivo documental.
Uma
das ações mais importantes do Memorial do Imigrante é a Festa do Imigrante.
Esse evento anual foi conquistando sua legitimidade na medida em que as
comunidades sentiam-se cada vez mais, como verdadeiros protagonistas do evento.
A festa hoje se configura como a mais viva manifestação da memória da imigração
e do envolvimento da comunidade no museu. O corpo funcional do museu tem o
papel mediador e de infra-estrutura.
Não
cabe ao Estado definir os valores de pertencimento das comunidades de
imigrantes para a sociedade. Pelo contrario. Na medida em que falamos de um
passado histórico, de seus desdobramentos e da dinâmica das migrações no
presente, a nós cumpre favorecer a visibilidade dos valores que envolvem o
fenômeno, dando lugar no museu para as manifestações dos próprios sujeitos da
história portadores de memória.
O
Memorial do Imigrante foi criado para dar destino a uma importante massa
documental produzida desde 1892, com o início das migrações de massa promovida
pelo governo do Estado de São Paulo.
Criado como Museu em 1993 e reformulado para Memorial em 1998, foi uma
importante ação de política do governo do Estado, que ao mesmo tempo em que se
estabelecia o mais completo arquivo no mundo sobre imigração reunido em um
mesmo espaço, rendia-se uma justa homenagem aos imigrantes em São Paulo. No Brasil
os documentos sobre a história da imigração estão em Arquivos Nacional ,
Estaduais e Municipais. O Memorial do Imigrante de São Paulo é a única
instituição cultural especializada neste assunto.
Sabemos hoje, que poucos países possuem documentação histórica tão rica em
dados individuais como a que foi produzida pela burocrática política de
imigração brasileira e mais especificamente paulista, sob guarda no Memorial do
Imigrante. Essa documentação foi reconhecida e classificada como Memória do
Mundo em 2009 pela UNESCO. Reconhecimento esse que passou, em primeiro lugar,
pela nossa própria conscientização como guardiões públicos desse importante
acervo.
O
Memorial do Imigrante esteve voltado durante muito tempo, aos estudos da
História da imigração de massa do final do século XIX e começo do século XX em São Paulo.
Tânia
Andrade Lima, sobre as Histórias coloniais, diz que -_ “Narrá-las simplesmente,
em perspectivas biográficas que se esgotam em si mesmas, significa
desconectá-las do mais espetacular processo desencadeado pela espécie humana ao
longo da sua trajetória” (LIMA, 2004 p 19) –. Utilizo o mesmo entendimento em
relação à História das migrações. Com essa apropriação, quero dizer que o
Memorial do Imigrante, não poderia continuar trabalhando apenas as biografias
dos imigrantes, deslocadas de uma perspectiva espacial (fenômeno planetário) e
temporal (condição da humanidade desde os primórdios até os dias atuais) como
vinha fazendo até então.
Tânia
A. Lima afirma também - “Se estudados e apresentados (os objetos) isoladamente,
desarticulados dos processos mundiais mais amplos e das tensões sociais que
levaram à sua produção e consumo, os objetos perdem sua força. Esvaziados,
pouco contribuem não só para o entendimento do fenômeno da construção da
globalidade, como também para a compreensão do seu próprio significado.” (LIMA,
2004 p.20)
É
verdade que os imigrantes e seus descendentes se emocionavam no Memorial do
Imigrante. Não se poderia dizer, no entanto, que os imigrantes, seus
descendentes e o público em geral, levavam consigo, após a visita ao Museu, uma
compreensão sobre o processo migratório para a História da Humanidade, sequer
para a história da construção da identidade paulista.
O
desafio que se coloca para os museus de migração hoje é propiciar uma
compreensão abrangente do fenômeno das migrações. Como diz Gerard Noiriel,
trata-se de “mudar o olhar da sociedade e do poder público sobre os
imigrantes”. (NOIRIEL, 2007, p 13)
Ainda
citando Noiriel, “a cultura pode ser um meio de ação cívica”.
Os
museus e centro de estudos de migração podem e devem facilitar o diálogo e a
transmissão cultural entre gerações. Dando voz aos migrantes e as segundas
gerações valorizarão a diversidade e a integração cultural. Mostrará a
contribuição dos imigrantes nas sociedades de destino, colaborando para a
desconstrução de estereótipos. Como um lugar de memória, contará estórias
individuais e comuns às pessoas em movimento, mostrando as razões que levam os
migrantes, refugiados ou forçados a deixarem seus países de origem.
Está
contida nesses museus, a grande contribuição dos imigrantes nas sociedades de
destino. Estão contidos também os conflitos individuais e as tensões sociais
que este fenômeno causa.
A
atuação em rede de Centros de Estudo de migração nos deu oportunidades de
verificar não apenas as diversas denominações dessas instituições como também
as diferentes linguagens utilizadas na comunicação museológica. A Cité de
l’histoire Nationale d’immigration na França, por exemplo, utiliza em suas
exposições, obras de arte de artistas imigrantes ou que tenham a imigração como
tema. É a utilização da linguagem artística como mais uma expressão dos valores
culturais.
Qual
o objeto de estudo dos museus de migração senão o homem e a sociedade; o
individuo e sua identidade; os artifícios civilizatórios da criação de
fronteiras nacionais e o conceito de nacionalidade; a geografia humana x
geografia política; a integração e a etnodiversidade que corresponde ao
interculturalismo que enriquece (e conflita) o mundo globalizado e as políticas
nacionais.
Se a
abordagem acadêmica sobre imigração enfatizava a melhor compreensão das raízes
do movimento migratório de massa transoceânico, suas implicações
sócio-econômicas e as trajetórias familiares, nos últimos anos os estudiosos
acadêmicos se voltaram para as questões da construção das novas identidades e
dos graus de integração nos países receptores. Focado nesses fatores, os
estudos se desenvolviam no marco dos respectivos países. Esse isolamento foi
rompido na direção de um entendimento mais global sobre questões raciais,
relações de trabalho, grau de urbanização e de industrialização em cada país,
conferindo uma maior inteligibilidade de toda esta dinâmica.
“A
cultura não deve ser pensada apenas no âmbito das políticas estatais ou das
propostas de acordos multilaterais, nem como mero produto, evento ou
espetáculo, mas sim como processo permanente de criação de uma urdidura
simbólica que permita o múltiplo entrecruzamento de experiências e tradições”...
“As práticas culturais mais do que outras instâncias ensejam e contribuem para
a organização dos interesses coletivos. Políticas culturais devem ser
interpretadas como vetores visando à construção de valores coletivos”. (VELOSO,
2008).
Tereza Scheiner em seu artigo da revista Nouvelle de l’ICOM, intitulado - Uma
Contribuição para um Mundo Melhor - se refere aos museus como “...mediadores
para uma compreensão entre as culturas, os museus contribuem à harmonia social.
Eles ajudam as sociedades a perceber o patrimônio como um campo de possíveis,
como um verdadeiro sustentador para uma cultura global mais tolerante, mais
atenta aos valores de todos os seres humanos”.
Nem
todos os museus criam espaços que favorecem a reflexão sobre todas essas
questões. Esses espaços seriam os Memoriais?
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Referências Bibliográficas
LIMA, Tânia Andrade Cultura Material, Hibridação e
Dominação planetária: A Globalização nos museus históricos texto 7º
Colóquio da Associação Internacional de Museus de História, (2007)
NOIRIEL,
Gerard L’historien dans la Cite :
comment concilier histoire et mémoire de L’immigration ? (2007)
UNESCO Museum International nº 233,234
VELOSO, Mariza, participação no I° Seminário Articulação
Latino-Americana: Cultura e Política, 2008
AIMH, Mèmoriaux – Actes des Journées d’Étude, Conseil
Français de l’Association Internationale dês Musées d’Histoire, 2005 Marseille
França
GORZ, André, Misérias do Presente Riqueza do Possível,
(1997) trad. 2004, p.131 a 139
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