quarta-feira, 22 de junho de 2016

Palestra em Buenos Aires 2014

« Enjeux scientifiques, politiques et mémoriels autour des musées d’histoire de l’immigration »Buenos Aires el 3-4 de noviembre 2014

O tempo dos governantes nem sempre é o tempo dos museus




Eu queria dividir com vocês uma experiência marcante que aconteceu no Memorial do Imigrante em São Paulo.
Acredito que a analise desta experiência poderá trazer elementos para a nossa reflexão sobre os temas propostos para esse workshop.
Tentarei analisar três momentos da instituição, três políticas museológicas distintas e suas práticas
:

o O primeiro período vai de sua fundação em 1995 a 2005.

o O segundo de 2005 a 2010, período em que dirigi o Memorial.


Em 2010 o Memorial foi fechado para restauro do edifício, o acervo dispersado e todo o corpo funcional demitido e assim ficou por quatro anos.

o O terceiro momento é a reabertura em junho de 2014 com o nome de Museu da Imigração.

O Memorial do Imigrante de São Paulo foi fundado em 1995 instalado na antiga Hospedaria dos Imigrantes de São Paulo que funcionou de 1887 a 1976.
Foi pioneiro na musealização do fenômeno das migrações assim como Museu de Imigração em Melbourne - Austrália, o Memorial em Ellis Island - New York e o Píer 21 Halifax no Canadá.
Ao longo de 91 anos de funcionamento, a antiga Hospedaria dos Imigrantes gerou um importante arquivo documental. Contava com uma Agência Oficial de Colonização e Trabalho que acolheu e encaminhou aos novos empregos, 2,5 milhões de imigrantes de 76 nacionalidades.
Na década de 1930 acolheu um milhão de trabalhadores migrantes de outros estados brasileiros.
O Memorial herdou todo o acervo da antiga Hospedaria e ao longo de sua atividade coletou objetos, fotografia, gravações de histórias de vida, documentos pessoais, coleções de jornais de comunidades, etc.
Recebeu doações de objetos representativos de famílias de imigrantes e recolheu documentos em delegacias de estrangeiros em outras cidades paulistas, listas de bordo de navios que aportaram no Porto de Santos em São Paulo e documentos de outras hospedarias que tiveram breve existência.
Até 2005 o Memorial dedicava-se a preservação de seu acervo focado nas migrações em massa do século XIX e início do século XX . Tinha atribuição oficial da emissão de Certidão de Desembarque sob demanda, para fins de obtenção de dupla cidadania, comprovação de parentesco para fins de herança, localização de pessoas desaparecidas para Cruz Vermelha e outras demandas judiciais.

O acervo não tinha tratamento técnico-museológico de preservação e, por não estar totalmente catalogado e informatizado o acesso era precário.
A coleta e o recolhimento não obedeciam a critérios técnicos de uma clara política museológica.
As exposições eram a maioria de longa duração ou permanentes. A maioria organizada a partir dos objetos disponíveis, legendados, mas sem uma narrativa subjacente que os re-significassem além dos dados estéticos individualizados.

O segundo momento foi em 2005.

Uma nova administração se estabelece. Uma nova política museológica redireciona as atividades internas, recompõe cargos e funções técnicas e administrativas e inicia nova atuação junto à sociedade.
- Criamos um novo site dando acesso a pesquisa on line do banco de dados dos registros oficiais de todos os imigrantes que entraram em São Paulo. De 100 Certidões emitidas por mês passamos a mil atendendo inclusive pedidos vindos de outros países.
- Criamos um Comitê de aquisição de acervo.
- Aproximamos o Memorial do Imigrante da área acadêmica desenvolvendo trabalhos e projetos conjuntos e disponibilizamos o acervo a pesquisadores. - Inserimos o Memorial do Imigrante no cenário dos centros internacionais de estudo de migrações. Estabelecemos trocas de informações, de exposições e organizamos seminários. Desenvolvemos linhas de pesquisa com arquivos e museus de países de origem de imigrantes que vieram para São Paulo, como o Consello de Cultura de Galícia Espanha e com CISEI - Centro Internazionale Studi Emigrazione italiana e MEI - Museo Nazionale Emigrazione Italiana (Roma) Itália.
- Em sintonia com as novas tendências, tanto na área de estudos de migrações, quanto na área de museus, em outubro de 2006 lideramos a criação da Rede Brasileira de Centros de Estudo de Migrações. Com uma plataforma interativa web, esta rede cadastrou esses centros para facilitar a identificação dos acervos de imigração no país, auxiliando no reconhecimento destas Instituições por parte de pesquisadores, estudantes e público em geral.
Poucos dias depois participamos em Roma, com outros 15 museus, da criação da Migration Museums International Network junto a UNESCO e IOM-International Organization for Migration com o objetivo de facilitar a troca de informações e a cooperação internacional desenvolvendo projetos e atividades comuns.
– Ampliamos nosso objeto de estudo para além do século XIX, época das migrações massivas, abrigando em nosso foco as migrações contemporâneas.
- Com profissionais especializados começamos a dar tratamento técnico museológico ao acervo.
Foram anos de muito trabalho e grandes resultados, como a classificação de Memória do Mundo conferida pela UNESCO ao Memorial do Imigrante em 2009, pelo tratamento técnico de conservação que realizamos com os livros da Hospedaria de Imigrantes, acervo documental tombado também pelo Condephaat – Conselho de defesa do Patrimônio histórico de São Paulo.
- intensificamos as relações com os órgãos consulares e com as comunidades imigrantes no Brasil relacionando nossos registros de imigrantes.
- Na direção do interesse multidisciplinar do tema migrações humanas, iniciamos várias parcerias. Com a Sociedade Junguiana de São Paulo trabalhamos a imigração no processo de construção da identidade paulista a partir dos pressupostos metodológicos e dos fundamentos teóricos da Psicologia. Realizamos simpósios e seminários com órgãos oficiais de imigração como o ACNUR Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos, com organizações sociais de assistência ao imigrante como albergues e igrejas.
- A gestão do Memorial passou efetivamente a ser partilhada com os protagonistas do fenômeno das migrações. A partir da Festa do Imigrante que já acontecia anualmente no período anterior, abrimos nossos espaços para reuniões das comunidades de imigrantes, cursos de línguas estrangeiras, festas comemorativas e exposições, assessoria técnica para organização de centros de memórias comunitários.

Essas novas relações provocaram a revisão da missão e da visão do museu, dando conta de uma dinâmica natural provocada pelo protagonismo dos próprios imigrantes e seus descendentes e pela força de expressão de suas demandas.
Se a abordagem acadêmica sobre imigração enfatizava à melhor compreensão das raízes do movimento migratório de massa transoceânico, suas implicações sócio-econômicas e as trajetórias familiares, nos últimos anos os estudiosos acadêmicos se voltaram para as questões da construção das novas identidades e dos graus de integração nos países receptores. Focado nesses fatores, os estudos se desenvolveram no marco dos respectivos países. Esse isolamento foi rompido na direção de um entendimento mais amplo sobre questões raciais, relações de trabalho, grau de urbanização e de industrialização em cada país, permitindo as comparações e a percepção de semelhanças e diferenças.

Com a globalização e o surgimento da Comunidade Européia, a questão das migrações se colocava no centro das preocupações políticas mundiais.
Dados da época (2006) apontavam que 220 milhões de pessoas estavam fora de seus territórios de origem. Eram 3% da população mundial, o equivalente a população do Brasil e Argentina juntos. O Fundo monetário Internacional apontava 815 milhões de emigrantes potenciais e 200 milhões de migrantes internos, aqueles que deixam suas cidades sem deixar o país. A isso devem ser somados 11,5 milhões de refugiados.
Estudos do BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento, a respeito das remessas financeiras de cidadãos residentes no exterior nos últimos anos, indicam que em 2004, mais de US$ 45 bilhões foram enviados por emigrantes para seus países da América Latina e Caribe. Em 2006 o Brasil recebeu US$ 3,2 bilhões em remessas. Era o 15º país no mundo com maior volume de remessas enviadas por seus emigrantes.
Dados divulgados no Seminário “Globalização Internacional e Desenvolvimento”, realizado em Santander - Espanha apontava que, um aumento de 3% no número de imigrantes nos países desenvolvidos geraria US$ 300 bilhões adicionais para a economia, mais que os potenciais ganhos com a rodada Doha de liberalização comercial. Na ponta dos países emissores de migrantes há o fato de que 25% da economia de Honduras era proveniente de remessas de hondurenhos que viviam no exterior. Na ponta dos receptores, “havia 12 milhões de irregulares trabalhando nos EUA, o que equivalia a 9% da população empregada; se todos fossem expulsos, o PIB despencaria”, calcula Guillermo de La Dehesa[1].

Historicamente a imagem dos imigrantes é a de um cidadão de segunda classe ou um sobrevivente para a economia dos países tanto os de origem como os de destino. Essa imagem muitas vezes estereotipada conflita com os dados acima. Colocando de outra forma, as migrações favorecem as economias dos países emissores e receptores, porém o imigrante individualmente e a sociedade em geral, não tem consciência disso. Há que se analisar também a existência de preconceito de classe social e a diferença de tratamento que se dá ao individuo qualificado profissionalmente ou pertencentes às classes mais abastadas que passam viver em outros países. Esses não carregam o rótulo de imigrante.
Como já salientou o UNHCR – The UN Refugee Agency, os meios de comunicações muitas vezes são responsáveis pela difusão de estereótipos negativos sobre migrantes e refugiados e contribuem para a difusão de sentimentos racistas e xenófobos junto à opinião pública[2]. Podemos incluir aqui a literatura e o cinema de ficção que trataram o assunto equivocadamente, desinformando a sociedade sobre o papel do migrante nos países de origem e nos de destino.
O desafio que se colocava para os museus de migração era propiciar uma compreensão abrangente do fenômeno das migrações humanas. Como diz Gerard Noiriel, trata-se de “mudar o olhar da sociedade e do poder público sobre os imigrantes”. [3]
Entendíamos que os museus devem ser espaços de encontro e diálogo entre as organizações de imigrantes e a sociedade. O objeto de estudo dos museus de migrações os insere no contexto político da sociedade organizada e, como instituições culturais, focam o fenômeno das migrações necessariamente no âmbito da cultura. Esta perspectiva os permite um entendimento abrangente do fenômeno, bem como uma maior capacidade de ação junto aos segmentos organizados da sociedade. 

Ainda citando Noiriel, “a cultura pode ser um meio de ação cívica”.
Aos museus de migração impõe-se uma revisão dos discursos que historicamente representaram os imigrantes. Há que se confrontar discursos e estudos antropológicos, demográficos, psico-sociais, econômicos e políticos aos dos historiadores. Mais do que isso, neste museu o imigrante terá voz e se sentirá confortável para dar seu testemunho, falar de suas dificuldades, contar suas histórias enfim, se fará conhecer pela sociedade que, muitas vezes por desconhecimento, o discrimina.
As migrações contemporâneas ainda não estão contidas nos museus de migrações. A situação de “ilegalidade” desses indivíduos e a fragmentação das atribuições e controle de imigração em vários órgãos oficiais e não oficiais aumentam esta dificuldade. A imigração forçada dos povos da África escravizada também não mereceu ainda sua inclusão nesses museus.

Os museus de migração pertencem à categoria dos museus de História e de Sociedade. São uma tentativa de reconhecimento do patrimônio da imigração como Patrimônio Nacional.
O museu é um espaço político social e nele o passado, como protagonista do futuro, atua como força transformadora.
Não há neutralidade na ação museológica.
A musealização do fenômeno das migrações humanas enquanto escolha e seleção de testemunhos materiais revela o olhar político da sociedade. Mais do que a historiografia, a multidisciplinaridade da ação museológica será instrumento de alienação ou de conscientização. Poderá tanto banalizar e romantizar o tema como provocar o olhar critico subjacente à narrativa expositiva.
Waldisa Russio dizia já na década de 1980 que museu é o cenário privilegiado onde se dá a relação direta entre homem e o objeto/testemunho.
Esses museus devem estar preparados para subsidiar políticas públicas uma vez que a História neles contida dará a perspectiva dos aspectos positivos e negativos dessas políticas.
Os museus de migrações devem estar bem informados sobre as leis e convenções internacionais existentes no país, relativas a migrações e disponibilizá-las para a sociedade em geral e principalmente para os imigrantes, conscientizando-o de seus deveres e direitos. Para isso deverá estar em contato estreito e permanente com instituições e ONGs nacionais e internacionais de apoio aos imigrantes. Da mesma forma manterá interlocução privilegiada com órgãos governamentais como Ministérios da Justiça e das Relações Exteriores e com as Polícias Federais. Como músicos e artistas pesquisam materiais históricos que os inspiram em suas novas criações artísticas, também políticos, parlamentares e advogados pesquisarão no museu subsídios para seus trabalhos jurídicos e legislativos.
Para recuperar os movimentos, itinerários, dinâmicas de integração das comunidades, das relações passadas e presentes entre os países de origem e os países de acolhida, entre as primeiras gerações dos migrantes e os seus descendentes, os museus de migração romperão fronteiras nacionais trabalhando em cooperação com instituições da mesma natureza internacionais e em outros países.

Não há neutralidade na atividade museologica.
Aos museus compete colecionar, salvaguardar e divulgar as informações históricas contidas em seu acervo histórico-cultural. Fazê-las conhecidas pela sociedade é fundamental para reduzir as dificuldades das relações entre os povos.
A história da humanidade é a história das migrações humanas. O fenômeno das migrações continua sendo uma história da sobrevivência no planeta e da dinâmica da construção das identidades. A arqueologia já comprovou que o homem tem sua origem mais remota no continente africano e de lá saiu para ocupar o mundo. A criação política dos estados nacionais não poderá camuflar a condição da origem migrante de todos e de cada um de nós.
Como mencionei acima em 2010 o Memorial do Imigrante foi fechado por determinação autoritária do governo do Estado de São Paulo. Ficou fechado durante quatro anos. Em 30 de maio de 2014 foi reaberto com o nome de Museu da Imigração. O acervo documental dispersado não voltou nem voltará para o lugar de onde foi gerado e preservado. Não há ainda um corpo funcional.
Foi inaugurado com uma grande exposição que se estende por várias salas. Utilizando-se da mais moderna tecnologia é uma narrativa histórica da imigração em São Paulo e um panorâmica do acervo de objetos da antiga Hospedaria. Os documentos oficiais estão representados na forma digital.
Há uma tendência dos museus virarem parques temáticos onde a cultura é entretenimento. Modernas tecnologias podem transformar as exposições em videogames. Os conteúdos em documentários. É um não-lugar. É um grandioso computador.
Passou a denominar-se Museu da Imigração o que revela uma mudança no conceito gerador. O que era um monumento à memória dos imigrantes, inspirador de um centro de estudos das migrações incluindo as migrações contemporâneas, com total protagonismo destes na gestão, transforma-se em museu do fenômeno migratório.
Na inauguração do Memorial em 1995 o Governador do Estado de São Paulo falou em seu discurso: “Este espaço por onde passaram milhões de pessoas imigrantes e migrantes será a partir de hoje um espaço para atender e homenagear as comunidades imigrantes filhos, netos e bisnetos.” Ou seja, um espaço de história, mas, sobretudo um espaço de memória. Um espaço político de afirmação e expressão identitaria, de convivência social e troca de vivências.
Neste novo museu a relação construída com os protagonistas foi rompida. Eles são espectadores convidados.
O precioso arquivo composto por documentos produzidos pela burocrática administração de fotos, relatórios, cartas de chamada, livros de registros, processos dos núcleos coloniais, listas de passageiros dos navios, passaportes, coleções de jornais de comunidades de imigrantes, documentos pessoais, cartões postais, não voltará ao museu.
Todas essas mudanças foram tomadas em gabinete do Secretario de Cultura sem qualquer debate, consulta pública ou participação da comunidade acadêmica ou de imigrantes.



Por fim quero fazer uma breve analise de conjuntura política global que afeta a gestão dos museus. Falo mais precisamente da política neoliberal da sociedade de mercado fruto da forma atual de capitalismo. É uma realidade no mundo todo. Existem muitos debates e reações a isso no campo da universidade e da educação. É uma política que tem como parâmetro os critérios da produtividade: quantidade, tempo e custo. Também a gestão dos museus incorporou a competição pela eficácia, deixando de ser uma instituição social para tornar-se uma organização, isto é, “uma entidade isolada cujo sucesso e eficácia se medem em termos da gestão de recursos e estratégias de desempenho e cuja articulação com os demais se dá por meio da competição”.
Grande parte do tempo de gestão é dedicado a preencher relatórios, alimentar estatísticas, levantar verbas e promover visibilidade para si e para a instituição. O gerenciamento de meio acabou se tornando fim.
A metamorfose da universidade e dos museus públicos em Organizações tem sido o escopo principal dos governos que se pautaram pela articulação com o ideário neoliberal. Assim é também no Estado de São Paulo. Estado mínimo, mercantilização e privatização dos direitos sociais baseado na noção de dotações orçamentárias públicas. As instituições culturais são entendidas como custos e não investimento.
A tecnocracia associada a esse modelo é aquela prática que julga ser possível dirigir a universidade ou o museu segundo as mesmas normas e os mesmos critérios com que se administra uma montadora ou um supermercado.

Os Museus de Migrações são enfim importantes instrumentos de respeito aos direitos humanos e de ação pela paz mundial.









[1] Presidente do Centro de Pesquisa de Política Econômica, com sede em Londres e autor de “Comprender la Immigración” lançado durante o Seminário.
[2] ACNUR- Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Políticas Públicas para as Migrações Internacionais – Migrantes e Refugiados, Brasília - Brasil, maio de 2006, p. 88
[3]  L’historien dans la Cite: comment concilier histoire et mémoire de L’immigration ?  Gerard Noiriel Museum Inernational nº 233,234

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