Artigo para Revista Museu
18 de maio de 2016
Museus para conhecer e entender os homens e a Sociedade
Entendo que o profissional museólogo é antes de tudo um preservacionista.
O museólogo é um ativista cultural militante e atento. Ele não espera que os
testemunhos da história venham a seu encontro. O trabalhador de museus vai
buscar, segue rastros, ouve histórias e lê os sinais. Como diz Waly Salomão “A
memória é uma ilha de edição”. A pesquisa museológica resulta em seleção e
ordenação de um quebra cabeça.
Nas décadas de 80 e 90, São Paulo vive um grande ativismo
preservacionista que coincide com a conclusão de curso das primeiras turmas de
museologia da Escola de Sociologia e Política de São Paulo – FESP. O Brasil
retomava uma efervescência cultural e política que havia sido interrompida em
1964 com o golpe militar. Foi um período de grande sede de democracia,
participação e valorização da cultura popular.
Nesta época criamos a primeira Comissão de Preservação, composta por arquitetos, trabalhadores de museus, advogados e juristas, junto ao Instituto de Arquitetos do Brasil - IAB. Discutíamos políticas de preservação do Patrimônio Cultural atuando inclusive junto às Prefeituras municipais do Estado de São Paulo e Capital, disseminando uma consciência de preservação na sociedade. Foram introduzidos novos critérios e valores de identificação de bens culturais que contemplassem o conjunto da sociedade. Apareceram os museus comunitários, de bairros e de temáticas afetas a grupos sociais até então desconsiderados. Ajudamos a criar Conselhos municipais de preservação e o instituto do tombamento nas cidades. Alguns anos depois participei do Conselho do CONDEPHAAT como representante do DEMA (antigo Departamento de Museus e Arquivo da Secretaria de Estado da Cultura e hoje Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico - UPPM). Foi o início da participação de museólogos neste órgão. Nesta época a maior parte dos livros de tombo do CONDEPHAAT contemplava o patrimônio edificado. As coleções de bens móveis ou paisagísticos não passavam de algumas dezenas, entre elas o acervo do MASP e o conjunto da abra de Benedito Calixto. O CONDEPHAAT é o único órgão de preservação criado e presente na Constituição do Estado de São Paulo.
Esse grande movimento preservacionista em São Paulo introduzia o novo
olhar dos egressos da primeira escola de museologia da - FESP. Esse novo olhar
era pautado pelo entendimento da função social dos museus para além das
atividades técnicas de conservação e exposição. Invertia-se a ordem de - museus para os objetos - para - museus onde se dá a relação específica do
homem com a realidade, onde os objetos em museus passam de fins em si mesmo
para meios de conhecimento do homem e da sociedade. Junto ao ICOM construía-se
a museologia como ciência.
Esse entendimento significou uma mudança de paradigma na atividade
museológica. Era o início da derrubada dos muros e a criação de pontes entre os
museus e seu entorno. Da mesma forma o patrimônio edificado passou a ser
percebido, não mais como indivíduos funcionais isolados, mas sim como parte de
um conjunto determinado pela cidade, pela urbes e pela ocupação cidadã.
Logo no inicio de minha carreira tomei conhecimento de um trabalho com
a comunidade local que se desenvolvia no Museu de Arte Sacra da Bahia. As ruas em seu entorno haviam se tornado zona
de prostituição. Os religiosos e técnicos ligados ao museu ofereceram
treinamento e trabalho de guias do museu para aquelas mulheres. Durante o dia trabalhavam
no museu e a noite, trabalhavam na zona. Com o tempo estenderam para as ruas o
trabalho de guias culturais e foram abandonando o trabalho noturno.
Indiscutivelmente foi a prática, principalmente na função de direção e
de criação de novos museus, que determinou meu entendimento sobre o
envolvimento e a indissociação do museu com seu entorno.
Encarregada de implantar o Museu da Cidade de São Paulo me vi diante de
um desafio – a impossibilidade de encerrar museológicamente intramuros ou em
quatro paredes a história de nossa megalópole. Concebemos então um museu com
uma sede contendo um centro de referência e núcleos temáticos em pontos
variados da cidade que pudessem não como os ecomuseus, última palavra em
musealização territorial na época, evidenciar a historia, os temas urbanos, o patrimônio
edificado, o significado dos nomes das ruas, os caminhos e ocupações na
paisagem da cidade.
No projeto do Museu do Teatro Municipal de São Paulo nos ajudou muito o
então cenógrafo do teatro, o inesquecível Carlos Jacchieri, italiano de larga
experiência e que nos contava sobre o museu do Teatro Negro de Praga e do Museu
do Teatro da Ópera de Milão. Jacchieri era um artista, um poeta, um mago impregnado
de sonhos. Para que eu pudesse conceber o mundo do Teatro Municipal me colocava
no palco com cenário iluminado e música e me chamava de Sherezade. Mostrou-me a cenotécnica, o guarda roupas e
as costureiras, o Arquivo de Partituras e me fez andar pelo telhado de teatro
para ver de cima o maquinário de engenharia naval do palco. Assisti a vários
ensaios e andei nos porões e nos labirínticos tuneis abaixo do palco por onde entravam
e saiam os fantasmas e os gatos da Praça Carlos Gomes. O Museu do Teatro
Municipal, criado antes do Museu da Cidade se transformou em um de seus
núcleos.
Ao objeto museal se impõe o seu pertencimento. Seja a um determinado
território, seja em sua historicidade, ele contem potencial simbólico e se estende
no presente em múltiplas direções e dimensões.
Mas, foi o Memorial do Imigrante que se impôs com plenitude para a
realização deste conceito. Por esse motivo fui voz discordante por ocasião da
mudança de nome do Memorial do Imigrante para o atual Museu da Imigração. De
qualquer forma a musealização, seja do fenômeno da imigração seja da memória do
sujeito imigrante, traz na sua dimensão primordial o movimento de pessoas em um
território. Origem e destino, viagem e espanto,
bagagem cultural e novas ocupações territoriais, assim a história das migrações
no Brasil, internas e externas é revelada no território traduzido em paisagem
cultural das migrações. Para além dos
muros do Museu como também intramuros abrigam-se a as expressões multiculturais
daqueles que chegam. Era imprescindível trabalhar com o Arsenal da Esperança,
organização que ainda hoje recebe imigrantes e ocupa, com o Museu, parte do mesmo edifício da antiga Hospedaria
dos Imigrantes além do terminal ferroviário e da estação do Brás por onde
chegavam os trens com imigrantes aportados em Santos. Por outro lado, completa
a paisagem cultural os núcleos coloniais resultantes das políticas públicas de
imigração do Estado de São Paulo, os bairros de italianos, japoneses, russos,
armênios, árabes e muitos outros que surgiram. Intramuros, além dos objetos
estudados, são os grupos de imigrantes e seus descendentes os verdadeiros
protagonistas de toda a programação do museu.
Lembro-me bem do surgimento de expressões como: museu vivo; museu dinâmico;
moderna museologia e museus e exposições participativos. Era o anuncio dos novos
conceitos e do desenvolvimento da museologia para além de atividade meramente técnica para uma verdadeira ciência humana.
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