terça-feira, 24 de maio de 2016

Museus para conhecer e entender os homens e a Sociedade

Artigo para Revista Museu
18 de maio de 2016


               
                  Museus para conhecer e entender os homens e a Sociedade


Entendo que o profissional museólogo é antes de tudo um preservacionista. O museólogo é um ativista cultural militante e atento. Ele não espera que os testemunhos da história venham a seu encontro. O trabalhador de museus vai buscar, segue rastros, ouve histórias e lê os sinais. Como diz Waly Salomão “A memória é uma ilha de edição”. A pesquisa museológica resulta em seleção e ordenação de um quebra cabeça.
Nas décadas de 80 e 90, São Paulo vive um grande ativismo preservacionista que coincide com a conclusão de curso das primeiras turmas de museologia da Escola de Sociologia e Política de São Paulo – FESP. O Brasil retomava uma efervescência cultural e política que havia sido interrompida em 1964 com o golpe militar. Foi um período de grande sede de democracia, participação e valorização da cultura popular.

Nesta época criamos a primeira Comissão de Preservação, composta por arquitetos, trabalhadores de museus, advogados e juristas, junto ao Instituto de Arquitetos do Brasil - IAB.  Discutíamos políticas de preservação do Patrimônio Cultural atuando inclusive junto às Prefeituras municipais do Estado de São Paulo e Capital, disseminando uma consciência de preservação na sociedade. Foram introduzidos novos critérios e valores de identificação de bens culturais que contemplassem o conjunto da sociedade. Apareceram os museus comunitários, de bairros e de temáticas afetas a grupos sociais até então desconsiderados.  Ajudamos a criar Conselhos municipais de preservação e o instituto do tombamento nas cidades. Alguns anos depois participei do Conselho do CONDEPHAAT como representante do DEMA (antigo Departamento de Museus e Arquivo da Secretaria de Estado da Cultura e hoje Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico - UPPM). Foi o início da participação de museólogos neste órgão. Nesta época a maior parte dos livros de tombo do CONDEPHAAT contemplava o patrimônio edificado. As coleções de bens móveis ou paisagísticos não passavam de algumas dezenas, entre elas o acervo do MASP e o conjunto da abra de Benedito Calixto. O CONDEPHAAT é o único órgão de preservação criado e presente na Constituição do Estado de São Paulo.
Esse grande movimento preservacionista em São Paulo introduzia o novo olhar dos egressos da primeira escola de museologia da - FESP. Esse novo olhar era pautado pelo entendimento da função social dos museus para além das atividades técnicas de conservação e exposição. Invertia-se a ordem de - museus para os objetos - para - museus onde se dá a relação específica do homem com a realidade, onde os objetos em museus passam de fins em si mesmo para meios de conhecimento do homem e da sociedade. Junto ao ICOM construía-se a museologia como ciência.
Esse entendimento significou uma mudança de paradigma na atividade museológica. Era o início da derrubada dos muros e a criação de pontes entre os museus e seu entorno. Da mesma forma o patrimônio edificado passou a ser percebido, não mais como indivíduos funcionais isolados, mas sim como parte de um conjunto determinado pela cidade, pela urbes e pela ocupação cidadã.
Logo no inicio de minha carreira tomei conhecimento de um trabalho com a comunidade local que se desenvolvia no Museu de Arte Sacra da Bahia.  As ruas em seu entorno haviam se tornado zona de prostituição. Os religiosos e técnicos ligados ao museu ofereceram treinamento e trabalho de guias do museu para aquelas mulheres. Durante o dia trabalhavam no museu e a noite, trabalhavam na zona. Com o tempo estenderam para as ruas o trabalho de guias culturais e foram abandonando o trabalho noturno.

Indiscutivelmente foi a prática, principalmente na função de direção e de criação de novos museus, que determinou meu entendimento sobre o envolvimento e a indissociação do museu com seu entorno.

Encarregada de implantar o Museu da Cidade de São Paulo me vi diante de um desafio – a impossibilidade de encerrar museológicamente intramuros ou em quatro paredes a história de nossa megalópole. Concebemos então um museu com uma sede contendo um centro de referência e núcleos temáticos em pontos variados da cidade que pudessem não como os ecomuseus, última palavra em musealização territorial na época, evidenciar a historia, os temas urbanos, o patrimônio edificado, o significado dos nomes das ruas, os caminhos e ocupações na paisagem da cidade.

No projeto do Museu do Teatro Municipal de São Paulo nos ajudou muito o então cenógrafo do teatro, o inesquecível Carlos Jacchieri, italiano de larga experiência e que nos contava sobre o museu do Teatro Negro de Praga e do Museu do Teatro da Ópera de Milão. Jacchieri era um artista, um poeta, um mago impregnado de sonhos. Para que eu pudesse conceber o mundo do Teatro Municipal me colocava no palco com cenário iluminado e música e me chamava de Sherezade.  Mostrou-me a cenotécnica, o guarda roupas e as costureiras, o Arquivo de Partituras e me fez andar pelo telhado de teatro para ver de cima o maquinário de engenharia naval do palco. Assisti a vários ensaios e andei nos porões e nos labirínticos tuneis abaixo do palco por onde entravam e saiam os fantasmas e os gatos da Praça Carlos Gomes. O Museu do Teatro Municipal, criado antes do Museu da Cidade se transformou em um de seus núcleos.

Ao objeto museal se impõe o seu pertencimento. Seja a um determinado território, seja em sua historicidade, ele contem potencial simbólico e se estende no presente em múltiplas direções e dimensões.
Mas, foi o Memorial do Imigrante que se impôs com plenitude para a realização deste conceito. Por esse motivo fui voz discordante por ocasião da mudança de nome do Memorial do Imigrante para o atual Museu da Imigração. De qualquer forma a musealização, seja do fenômeno da imigração seja da memória do sujeito imigrante, traz na sua dimensão primordial o movimento de pessoas em um território.  Origem e destino, viagem e espanto, bagagem cultural e novas ocupações territoriais, assim a história das migrações no Brasil, internas e externas é revelada no território traduzido em paisagem cultural das migrações.   Para além dos muros do Museu como também intramuros abrigam-se a as expressões multiculturais daqueles que chegam. Era imprescindível trabalhar com o Arsenal da Esperança, organização que ainda hoje recebe imigrantes e ocupa, com o Museu,  parte do mesmo edifício da antiga Hospedaria dos Imigrantes além do terminal ferroviário e da estação do Brás por onde chegavam os trens com imigrantes aportados em Santos. Por outro lado, completa a paisagem cultural os núcleos coloniais resultantes das políticas públicas de imigração do Estado de São Paulo, os bairros de italianos, japoneses, russos, armênios, árabes e muitos outros que surgiram. Intramuros, além dos objetos estudados, são os grupos de imigrantes e seus descendentes os verdadeiros protagonistas de toda a programação do museu.


Lembro-me bem do surgimento de expressões como: museu vivo; museu dinâmico; moderna museologia e museus e exposições participativos. Era o anuncio dos novos conceitos e do desenvolvimento da museologia para além de atividade meramente técnica para uma verdadeira ciência humana.

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