“Coexista em harmonia e retenha individualidade.”
The Analects – Zi Lu
O fenomenal desenvolvimento
pelo qual passa a China chega também a seus museus.
A globalização teoricamente
quebrou barreiras e muros, no entanto, o desconhecimento e a ignorância do
ocidente em relação ao oriente, perduram ainda hoje. Durante muito tempo, para a grande maioria dos
ocidentais, a idéia de mundo se resumia ao ocidente. Aos poucos ficamos sabendo
que a China inventou milênios antes, muito do que o ocidente “inventou” nos
séculos XVII, XVIII e XIX, inclusive a imprensa, como se pode ver no Museu
Xi’an Beilin.
O título deste artigo é
pretensioso. Na verdade trata-se de impressões
de viagem de uma museóloga ocidental à China, para participar da 22ª
Conferência Geral do Comitê Internacional de Museus – ICOM, realizado em novembro
de 2010. Nada mais apropriado para conhecer o país.
Minha imensa curiosidade por
essa cultura milenar vinha sendo alimentada há muitos anos. Não me satisfaziam as raras informações que
aqui chegavam sempre superficiais e descontextualizadas tanto política quanto
historicamente. Enquanto a maioria das pessoas repetia os pré-conceitos e a
contra informação da grande mídia, eu buscava nas entrelinhas uma forma de
conhecer melhor aquilo que eu percebia como muito antigo e muito novo a
respeito desse país e de seu povo.
Foi necessário verificar com
meus próprios sentidos.
Museu de Xangai |
A China é este grande fenômeno de desenvolvimento como todos sabem. Com seus museus não poderia ser diferente. Ou poderia?
Antes de meu espanto diante
do espetacular desenvolvimento dos museus chineses, pude confirmar mais uma vez
que os museus são fenômenos planetários. Povos de culturas tão diversas nos
quatro cantos do mundo preservam suas memórias e cultuam suas histórias.
Trata-se da necessidade social do indivíduo e dos povos de se identificar e de
se compreender como unidade parte de um coletivo. Seja na China, na Índia ou
numa ilha do outro lado do mundo, existem museus. A necessidade de criá-los e
mantê-los expressa a importância de socializar a própria cultura. Alguns povos,
principalmente africanos preservam suas memórias através da história oral tradicionalmente
transmitida pelos mais velhos, às gerações mais novas.
Os museus surgem a partir das
coleções de tesouros acumulados pela elite econômica no afã de mostrar poder.
Guerreiros de Xi An |
Museu de Xi An |
Essas coleções são
re-significadas quando tornadas públicas.
Os “tesouros”, testemunhos da
riqueza cultural de todo um povo ou do cidadão comum, serão contemplados apenas
no século XX. Os museus também não são prerrogativas dos países de regime
capitalista. Pelo contrário, os regimes socialistas os utilizam como uma apropriação
pelo povo, da sua própria história. O materialismo histórico inaugura a
história inclusiva valorizando e alçando os trabalhadores a protagonista, na
construção da identidade dos povos. Invertendo a supremacia da artificial
criação dos Estados Nacionais protagonizados pela elite burguesa da história
oficial, valoriza as organizações sociais em torno de seus valores culturais tradicionais
e comunitários.
Museóloga há 30 anos, eu me perguntava
como seriam os museus do outro lado do mundo. Seriam eles tão “estrangeiros”
como a própria cultura oriental?
Sou do tempo da chamada Cortina
de Ferro. O mundo do outro lado era envolto pela névoa da contra informação
midiática. Já havia visitado a Rússia e Cuba. Há alguns anos atrás um de meus
filhos foi à Índia e como sempre viajo imaginativamente com eles, perguntava: e
lá como são os museus?
Essas trincheiras de
preservação de cultura, antídoto à recorrente destruição e reconstrução
capitalista, contribuem para o principio vital de soberania, identidade e
autodeterminação dos povos.
Museu da imprensa |
Deparamo-nos com os museus chineses
e seus trabalhadores totalmente receptivos aos profissionais de todas as partes
do mundo, que chegaram para a Conferência.
Qualquer pessoa que quer
conhecer bem uma cidade, um país ou um povo, visita seus museus. Eles propiciam
um mergulho nas entranhas da cultura. Mostram a causa no passado que, mesmo
próximo, explica o efeito no presente.
Na China o novo está em toda
parte. Tem-se a impressão que o país todo está em obras. Com atenção mais
apurada pode-se ver que muitas delas são de restauração do seu vastíssimo Patrimônio
histórico e artístico e dos hutongs -
bairros inteiros ou aldeias da época imperial. Esses nos remetem às cidades
medievais européias com ruas estreitas e labirínticas, muralhas, fosso e ponte
levadiça, evidentemente, com suas peculiaridades culturais.
A escala chinesa é grandiosa.
Seus museus nos contam seis mil anos de história. Antes da revolução socialista de Mao
praticamente não havia cidadãos reconhecidos como tal. O imperador e sua corte
viviam encastelados em meio ao acumulo de tesouros artísticos preciosos longe
do olhar do povo. A Cidade Proibida, na capital, é um espetacular exemplo, como
também o Palácio de Verão nos arredores de Beijing. Uma classe de oficiais e
militares habitava alguns palácios e os hutongs e o resto do povo, bem... era o
resto. Milhares de escravos sem direito algum e com todos os deveres. Os que
estavam escalados para o patrulhamento da imensa muralha da China, por exemplo,
não viam outra paisagem por toda a vida.
Os edifícios construídos
especialmente para essas instituições que são na grande maioria pós-revolução,
apresentam arquitetura requintada. Espalhados por toda a China, Nacionais ou
regionais mantém o padrão de grandiosidade. Ocupando áreas enormes não são, no
entanto, padronizados em sua concepção. Como um ranking de projetos, talentosos
arquitetos edificam diversificadas obras arte que expressam tanto liberdade de
recursos e de criação, como também obediência a tradicional cultura chinesa da
harmonia entre celeste e terrestre, o redondo sobre o quadrado, entre o humano
e o natural. Assim podemos verificar estruturas arquitetônicas em grandes
quadrados encimados por grandes abóbodas arredondadas. Os halls de recepção são solenes e grandiosos.
As várias salas expositivas apresentam museografia contemporânea e ousada sem
dispensar as preciosas coleções bem conservadas ou restauradas. Desde dioramas
de aldeias dos primeiros habitantes do território, arquetipicamente parecidas
com nossas aldeias indígenas, com ocas e tudo mais, até a utilização de
moderníssima tecnologia com mídias interativas, algumas inéditas pra mim. Como também
vi na Rússia, utilizam os chamados Panoramas. Estes ambientes construídos com
recursos mais artísticos que tecnológicos são constituídos de pinturas ou
projeções em LED, como cenários 360 graus que, ao se aproximar do expectador se
transformam em imagens tridimensionais. Muitas vezes em salas circulares o
expectador fica no centro envolto como participante da cena. Sendo a reconstituição
de uma cena de batalha ou uma cidade medieval com imagens em movimento, os
visitantes se integram como parte da cena. A pesquisa e a produção científica
são muito importantes. As publicações primorosas
e densas grandes museus de grandes cidades Bei Shan nas publicaçõe
No mesmo local onde aconteceu
a Conferência pudemos conhecer uma feira com stands de serviços, de equipamentos,
de museus, materiais para conservação, para exposições, mobiliário técnico,
enfim, de toda a sorte de infra-estrutura para museus. Chamou minha atenção um
stand de vitrines de design moderno e elegante. Dentro delas pequenas peças que
pareciam estar flutuando no ar sem nenhum apoio visível. Percebendo minha
curiosidade uma risonha chinesa me explica que não são peças físicas, mas
imagens holográficas perfeitas de peças arqueológicas perdidas.
Estudantes uniformizados em
quantidade “chinesa” estão em todas as salas e atividades dos museus.
Os laboratórios e salas de
conservação são equipados com tecnologia de ponta e corpo técnico de
especialista em quantidade também chinesa. Lá, os museus participam como
qualquer universidade de concursos e prêmios de ciência e tecnologia e são
classificados e certificados qualitativamente por experts como o ISOs
existentes nos museus americanos chancelados pela AAM. O Museu de Shangai, por
exemplo, já publicou 120 livros acadêmicos e catálogos desde 1959.
Esse mergulho museológico nos
faz compreender a cultura milenar que sustenta a China contemporânea. A China é
poderosa porque poderosa e profunda também é a sua história.
Há muitos anos escrevi um
artigo que se intitulava Museus
instrumentos de Conscientização e de Alienação. Afirmei que os museus podem
derrubar os preconceitos e combater a ignorância, as idiossincrasias e a intolerância.
São instrumentos de aproximação entre culturas.
Vi coleções dos imperadores, museus
do período revolucionário, de arte antiga e sítios arqueológicos. Os templos
antigos foram musealizados sem perder suas funções como lugares sagrados. O
discurso museológico atribui sempre ao povo a construção do país. Para o culto
a personalidades existem os Memoriais de poetas, escritores, filósofos,
pioneiros, etc. No pavilhão da China na Expo Xangai 2010, que apresenta a
história da construção da China aos visitantes, os trabalhadores são os que
recebe todos os créditos.
Reparei que os chineses são a
maioria dos visitantes nos museus. Mesmo nos grandes museus nacionais os
estrangeiros são minoria. Não se vê, no entanto reverência especial aos
estrangeiros. A reverência maior é em relação aos compatriotas. A prioridade nas
filas é para eles. É um comportamento oposto ao que acontece no Brasil, o que sempre
me pareceu uma atitude subserviente, fruto de uma rançosa mentalidade colonizada.
O tema do encontro foi Harmonia
Social.
“Entendimento é favorecido pelo conhecimento e por sua vez auxilia na busca de pontos comuns, respeitando
a diferença e mantendo a coexistência harmoniosa entre diferentes
culturas”.
Esta é uma citação de Zheng Xinmiao Diretor do Palace
Museum, situado na Cidade Proibida. Possui 1,5 milhões de objetos resultado da
acumulação de 5000 anos de cultura tradicional e um importante exemplar da
civilização chinesa. Aberto ao público em 1925 já recebeu um total de
300.000.000 visitantes. Anualmente recebe mais que 10 milhões, entre nacionais
e estrangeiros.
O próximo encontro será no
Brasil. O mundo está curioso pelo nosso país.
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