Ana Maria da Costa Leitão Vieira [i]
Debates sobre constituição, organização,
gerenciamento e preservação de acervos em suportes analógicos, magnéticos e
digitais, denominados inicialmente de cinematecas, videotecas, midiatecas ou
acervos multimídia tem ocupado profissionais da área nas últimas duas décadas,
está na ordem do dia dos encontros desses profissionais, nacionais e
internacionais e continuará ocupando, seguindo a dinâmica de acelerada evolução
das tecnologias.
A partir da década de 90, no Brasil, cresce a
produção de documentos digitais: planilhas eletrônicas, sistemas de workflow,
Gestão de Documentos - GED , bases de dados, etc.
O enfrentamento cotidiano destas questões tem
desenvolvido práticas em ensaios e erros, que demandam tempo de observação,de
uso, acessibilidade e durabilidade, bem como a constante atenção às novas
tecnologias.
Políticas de aquisição e descarte de acervos
digitais começam a se delinear e se institucionalizar.
A informação digital é mais sujeita à adulteração,
vandalismo e acidentes que a analógica. Seus suportes são frágeis e perecíveis.
Soma-se a isso o fato de que os dados de computador dependem de complexos
sistemas de hardware e software de rápida obsolescência tornando-se uma ameaça
constante de perda de acesso aos acervos.
A maioria das mídias digitais em condições especiais
tem uma vida útil máxima de 10 ou 20 anos. Em condições mais comuns, a vida
útil pode ser tão baixa quanto cinco anos. Se o papel de polpa de madeira
química, cuja constituição ácida o leva a uma lenta autodestruição ao longo de
100 ou 150 anos, as mídias digitais com suas curtíssimas vidas, por vezes de
menos de uma década, representam um desafio que não se poderia conceber no
passado.
Sistemas de fluxo de trabalho (do inglês, workflow)
permitem a gestão controlada de atividades complexas, documentando
procedimentos, acompanhando a execução das tarefas e emitindo relatórios de
status dando condições para a longevidade digital.
Preservação e acesso aos acervos digitais
Paul Conway [CONWAY; 2001] contradiz a arquivística
tradicional, argumentando sobre questões acerca da tecnologia digital. Ele
afirma que “a preservação no universo digital descarta toda e qualquer noção
dúbia que entenda a preservação e acesso como atividades distintas”. Sendo
assim, uma eficaz atividade estratégica de recuperação da informação é a mais
importante para que a digitalização possa ser considerada uma atividade de
preservação. Esta estratégia deve ser bem estruturada, classificando e
indexando bem as informações digitais. Uma base de dados que não esteja bem estruturada
pode resultar numa grande quantidade de informações amorfas que contribui para
o empobrecimento da manipulação dos dados digitais. [1]
Segundo o que foi estabelecido na Recomendação
sobre a salvaguarda e a preservação das imagens em movimento, aprovada na 21ª
Conferência Geral da UNESCO (Belgrado, 1980), parte-se da ideia que acervos
audiovisuais são bastante vulneráveis e que seu desaparecimento constitui um
empobrecimento irreversível do patrimônio cultural mundial.
Já em 1939, o arquivista Binkley, defendia que “o
objetivo da política de arquivos em um país democrático não pode ser a simples
guarda de documentos. Deve ser nada menos que promover o enriquecimento da
consciência histórica dos povos como um todo.” [BINKLEY 39] [2]
Um museu digital hiperconectado
O Museu da Pessoa, pioneiro na constituição de
acervos digitais tem sido um laboratório de experiências considerando o
conhecimento acumulado em seus 25 anos de existência.
Como toda a instituição que constitui acervo
museológico-cultural o Museu da Pessoa constitui o seu como produto do trabalho
inspirado e caracterizado em sua Missão e Objetivos.
Missão e objetivo
O Museu da Pessoa acredita que valorizar a
diversidade cultural e a história de cada pessoa como patrimônio da humanidade
é contribuir para a construção de uma cultura de paz. Nossa principal missão é
a de ser um Museu aberto e colaborativo que transforme as histórias de vida de
toda e qualquer pessoa em fonte de conhecimento, compreensão e conexão entre
pessoas e povos.
Trata-se de um legado diferenciado da história do
país, que prioriza a transformação cultural, social e implica em construir uma
massa crítica suficientemente grande para garantir a sustentabilidade da ideia
e de sua ampliação em inúmeros segmentos e espaços sociais. [3]
“Narrativas são objetos intangíveis por sua própria
natureza. Não cabia ao Museu da Pessoa transformá-las em objetos
tridimensionais - i.e. ter como foco apenas a preservação dos suportes -, nem
mesmo concentrá-las em um dado “espaço”. A conclusão foi a de que esta sede
deveria ser digital: uma base de dados organizada de forma a permitir amplo uso
pela equipe do Museu da Pessoa assim como pelo público. Passou a adotar o
adjetivo digital em detrimento de virtual. “Enquanto o termo digital remete
aquilo que existe em um universo tecnológico atrelado a um ambiente
computacional, virtual pode passar a ideia de algo que existe apenas enquanto
potência, algo que virá a ser, a existir”.
A constituição do acervo do Museu da Pessoa
caracteriza-se pelo aspecto colaborativo, onde depoimentos, fotos e documentos
podem também ser inseridos livremente no Portal do museu pelos usuários.
Neste sentido todo visitante pode tornar-se produtor
do acervo ao registrar a história da sua vida e ser um curador, criando suas
próprias coleções de histórias, imagens e vídeos. As histórias são
registradas em projetos e programas temáticos ou livres, gravadas na sede do
museu, enviadas através da internet ou via Museu que Anda, um programa em
que, através de cabines itinerantes, registra as histórias de pessoas em
parques, estações de metrô, entre outros espaços. Às narrativas, soma-se o
conjunto de imagens coletadas junto aos entrevistados durante a realização da
entrevista. São imagens digitalizadas que retratam a história da vida privada
no Brasil de fins do século XIX até os dias de hoje.
O Museu da Pessoa possui também uma área educativa
que atua na formação de professores e alunos do ensino fundamental,
empreendedores sociais, jovens e idosos para utilização da memória como
ferramenta de mobilização em todo o território nacional e na articulação de
redes nacionais e internacionais. Foi em meio a essas questões que teve início
o trabalho de formação de novos produtores de memória. Passou, então a
“articular” as iniciativas, para que as histórias se conectassem e servissem
como um forte eixo mobilizador de grupos sociais diversos. Percebeu-se que grande
parte dessas organizações “praticavam” o registro de histórias, mas não
possuíam ferramentas suficientes para processá-las e transformá-las em um
acervo público e acessível. Dessa necessidade nasceu a Tecnologia Social
da Memória [4],
uma forma de transformar os conceitos e as ideias em práticas de modo que
grupos sociais variados possam apropriar-se das metodologias do Museu da
Pessoa. Assim é possível vislumbrar uma série de temas, tais como:
desenvolvimento industrial no Brasil, saúde, comércio, mulheres empreendedoras,
futebol, superação, moradia, migrações e imigrações, saberes tradicionais,
música, política, educação, literatura, meio ambiente, entre muitos outros,
além de linguagens, sotaques e vocabulário regionais.
Ao longo de seus 25 anos de existência o acervo do
museu tem refletido as mudanças de suportes e de guarda impostas pela
tecnologia digital. Nos últimos anos tem evoluído de simples armazenamento de
mídias até servidores que comportem o crescimento do acervo. Neste ano de 2018
nos preparamos para migração de dados e armazenamento em sistema LTO. O
processo foi iniciado em 2013, a partir de um detalhado diagnóstico, elaboração
do Plano Museológico e um Programa de Descarte observando condições de
conservação x acesso.
A própria natureza do acervo do Museu da Pessoa
rompe fronteiras. Invertendo a hierarquia posta nos museus tradicionais onde o
conhecimento é dado para o público, no Museu da Pessoa o público se
torna acervo. Acervo de histórias de pessoas que se conectam e partilham
individualidades. Cada pessoa é um universo de humanidade e valores que,
partilhados derrubam preconceitos, ignorâncias e isolamento.Isso pode mudar o
mundo. Pode ser o futuro dos museus. Um museu não circunscrito a um lugar
físico ou fixo, ou em uma geografia, sequer no tempo.
[i] Museóloga
RG COREM nº110 II
[1] CONWAY,
2001] CONWAY, Paul. Preservação no Universo Digital. Projeto Conservação
Preventiva em Bibliotecas e Arquivos – CPBA. 2001. Rio de Janeiro
[2] Robert
BINKLEY, Strategic objectives in archivepolitics
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